sexta-feira, maio 13, 2005

Num Jogo de Xadrez

Em algum lugar distante de Minas Gerais, Carlos
e Fernando jogavam xadrez.
Todo aquele jogo estratégico e demorado faria qualquer um dormir nos três primeiros lances, já que cada jogador, bastante experientes, por sinal, demoravam longos minutos até que o parceiro pudesse revidar o passe.
Passadas algumas horas, sem que nenhum murmurasse um só som de exaustão ou fadiga, diante do canto dos pássaros, da imensidão do castanheiro que lhes fazia sombra e do cascatear da água dum riacho que alí corria próximo, Fernando sussurrou para o amigo:
"Que bela jogada, Carlos."
"Eu venho estudando esta desde meu último jogo com o Manuel, no qual e perdi, aliás." respondeu.
"E por falar nele, por onde anda o pequeno?"
"Foi-se embora."
"Para onde?"
"Pasárgada, eu creio... Dizem que lá ele é amigo do Rei..."
"É...Ouvi falar" voltou a fitar o tabuleiro e reclamou "Ora, Carlos! Não há escapatória! Se pulo para a direita os peões me pegam, se vou para o meio me atacam de ambos os lados e se vou pra esquerda fico na mesma. Não vale a pena..."
"Tudo vale a pena..."
"Se a alma não é pequena... Sim! Sim! Essa eu conheço bem..."
"Então"
Fernando foi para a esquerda. Perdeu seu cavalo. Interpelou:
"Nunca mais faço uma dessas..."
"Nunca mais" retribuíu Carlos "Isso me lembra um amigo seu..."
"O Edgar? Pois é... Grande figura!"
"Por onde anda?"
"Da última vez que o vi me contou umas histórias... Disse que estava uma vez lendo em sua biblioteca quando ouviu o que parecia o som de algúem que batia levemente a seus portais. Era uma visita que estava batendo aos seus umbrais."
"E então?" perguntou Carlos curioso.
"É só isto, e nada mais."
"Não tinha uma ave nessa história? E quando mais você o viu?"
"Nunca mais..." Fernando resignou-se a responder.
"Nunca mais" Assentiu Carlos e depois lembrou "Sua vez..."
"Olhe... Uma flor nasceu..."
"Onde?" Interessou-se Carlos virando para trás.
Fernando trocou algumas pedras do tabuleiro.
"Alí... Atrás daquele tronco, perto do riacho!"
"Deve estar ficando louco..." Disse balançando a cabeça...
"Garanto que uma flor nasceu. É feia. Mas é realmente uma flor."
"Entendo" voltou a fitar o tabuleiro. A grossa armação trazia dois pequenos olhos castanhos que se arregalaram. De súbito, Carlos, com o bispo, comeu o cavalo de Fernando, e logo em seguida comeria mais três peões.
"Mas é um absurdo" Reclamou Fernando.
"Questão de técnica" Respondeu Carlos calmamente como todo bom mineiro, e ainda sugeriu que Fernando deveria parar de jogar consigo mesmo, já que não aprendia novas jogadas, e ele respondeu como se tivesse ouvido a pior coisa do mundo:
"Mas veja bem, meu amigo. Ricardo joga como ninguém, Álvaro tem lá suas agonias e é um tanto apressado mas já ganhou de mim algumas vezes. Pena Alberto não saber jogar, aliás, nem se preocupa em." E como se o assunto alí tivesse terminado por completo Fernando perguntou "E aquele seu amigo, o Mário?"
"O Desvairado?"
"Esse mesmo. Que fim levou o sujeito?"
"Acho que foi pra Pernambuco e pulou na Venezuela para então se embrenhar no meio do mato amazônico." pensativo, olhando para o céu "Subiu num cipó e foi parar nas estrelas. Deve ter virado um desses astros que ainda brilham mesmo quando Vei invade a noite com suas luzes"
"Cheque" Jogou Fernando sem exaltações.
"Mas como?" Pasmou Carlos.
"Questão de técnica, meu amigo, técnica." Zombou.
Mineiro que era, Carlos aceitou a derrota, cumprimentou o adversário e o chamou para apreciar o poente.
Juntos se emocionaram enquanto os raios solares alaranjados mesclavam-se às nuvens, às montanhas e aos corações dos dois amigos.
A noite começava a invadir o dia. O castanheiro, o riacho, o tabuleiro sumiam diante da escuridão. Lá longe ainda era possível distinguir pequenas casinhas que acendiam suas fracas luminárias incadescentes. E junto com o dia, Carlos e Fernando iam desaparendo, desaparecendo, até se tornarem uma leve bruma que logo foi dissipada pelo ar.
Pôde-se ouvir a fraca voz de Carlos dizendo
"Eta vida besta, meu Deus" e Fernando complementou
"As coisas não têm significação, Carlos, têm existência. As coisas são o único sentido oculto das coisas!"
Após toda aquela cena pitoresca sumiram. Mas voltariam. Voltariam com outros. Sempre estariam alí. No ar, no riacho, no tabuleiro, no castanheiro, nas coisas. Sempre estariam. Sempre estarão.
Eles estão...