sábado, fevereiro 04, 2006

Seriam gatos atropelados?

Acomodem-se, caros leitores! O que vão ler agora não é nada surpeendente. Não é bonito e muito menos original. É a história duma garota que conheci num sonho.
Disse que eu conheci?
Perdão, leitores, mas na realidade ela me conheceu no tal sonho, afinal o sonho era dela e eu lá estava. Pouco conversou comigo, mas deste pouco vi nela uma grande pessoa. Chama-se Laura. Sou para Laura o ser perfeito. Ora, vejam! A garota me conhece no prórpio sonho e já me toma por perfeito. É muita pretensão. Confesso que não posso falar muito de mim. Não tenho nome nem passado. Sou, segundo ela, Ele. Mas podem me chamar de Ritmo. Ouvi esses dias tal palavra e gostei. Concordo que Ritmo não seja um bom nome. Enfim! Não precisam me nomear. Sou eu. Para Laura, sou Ele.
Ela dorme. Atentem para suas maçãs rosadas. Não é uma graça?
Acordou. Vejamos. Cabelos desgrenhados. Olhos cor de... Esqueçam! Esses detalhes não são nem um pouco importantes! O importante é que ela é bela. Visualizem vossas imagens próprias de garota bela! Esta é Laura!
Minha Laura! Ou sou eu dela?
Acorde Laura!
Acordou. O rosto amassado. Cabelos desgrenhados. Quer ficar na cama. Não quer sair. Ficar lá até seu corpo não permitir mais. Até a fome bater ou precisar ir oo banheiro. Até então estava tranqüila.
Pensamentos. À cama de manhã sempre somos afetados por pensamentos indesejados. De noite também. Mas com Laura é diferente. Laura pensa quando acorda. Faz um esforço danado pra lembrar todos os sonhos e repensa cada um. São geralmente três cada noite.
Sonhou que era Frida Kahlo. Mas deu um tiro em Rivera antes de morrer. Atitude sensata, e creio que muitos dos leitores concordam. Depois sonhou que era um figura num quadro de Modigliani. Grande artista. Era uma de suas mulheres nuas que tanto pintava. De fronte para os olhos ávidos do pintor. Nua. Aqueles olhos que lhe pentravam a carne e transformavam vida em tinta e tinta em vida.
Nua! Sentia-se livre! Sua mão descia vagarosamente ao encontro do ventre. Tocava-se.
Não, leitores! Não se sintam constrangidos. É apenas uma garota descobrindo-se. Tento usar dos mais diversos eufemismos para não vos chocar.
Tocava-se sim. Com a outra mão massageava o seio direito, e prazer. Era o que sentia. Mais rápido. Ela se controlava. Era dona de seu próprio prazer.
Terminou, leitores. Agora vem a parte que vos agrada. Ela se sente culpada. Por que, Laura? Por que culpada? Estás sozinha? Tens medo de morrer sozinha? És tão bela.
Sente-se culpada por não saber diferenciar certo de errado. Sente-se culpada porque acabou de se masturbar. Sentiu prazer. Prazer efêmero, como todos os prazeres, e sentiu-se culpada!
Pobre Laura! Mal sabe ela que nós observamos tudo! Aliás, vocês observam, eu narro apenas. Não carrego o mínimo de culpa.
Levantou e pegou seu caderno. Olhou pela janela e na rua viu uma mancha. Era, caros leitores, um gato morto, atropelado por um carro qualquer. Estatelado. Pegou seu lápis e traçou no topo da página "Seria um gato atropelado?". É aqui que o leitor interessa-se ao ver que o título do poema de Laura parece com o título do texto que lêem. Pois bem, leitores. Vós sois os outros gatos atropelados. Atropelados pelas mesmas atitudes de sempre. Parados. Mortos como o gato de Laura.
Não vou me demorar. O título é para uso de atenção mesmo.
Terminou seu poema. Destacou a folha do caderno e escondeu embaixo da cama onde haviam vários outros. Sentiu-se louca! Não se preocupe, Laura. Muitos dos que te observam agora fazem loucuras também. Nenhum deles admite. Mas o fazem.
Olhou novamente para o gato. Nunca o vira antes, mesmo que irreconhecível. Pensou no pobre gato. Pobre Laura.
Como queria ver um fim trágico para esse texto. Queria ver Laura atropelada no final, daí tudo faria sentido, o gato, os leitores, o título, e Laura.
Mas não peço que esmiuçem sentido em minhas palavras. Não é preciso ao menos que leiam. Descrevo tais fatos para deixar de ser gato atropelado. Mas o acidente é inevitável.
Noite! Rua! Chuva! Gato! Carro! Acidente!
Carro foge! Chuva continua! Gato morre!
Laura acorda! Acorde, Laura! Pra vida! Anda! Acorde!
Batem à porta! Não é ninguém! Só o vento!
Estava sozinha em casa! Acordara sozinha? Onde foram seus pais?
Lá na rua as pessoas contemplavam o gato. Lá estavam seus pais.
Todos olhavam para a imóvel criatura com um pesar que, não contem a ninguém, mas parecia certo deleite. A chuva voltava. Todos voltavam para seus lares e o gato lá.
Morto!
Chega de gatos por hoje!
Acordemos!
Chega de Laura! Chega de tudo!
Durma Laura! Não estou mais em teus sonhos! Tu estás nos meus!
Somos um só!
O despertador! O maldito despertador toca, leitores!
E sou obrigado a deixar vossas ilustres presenças...
Adeus, Laura...
Adeus, leitores!


Amedeo Modigliani. Reclining Nude. 1917.
Óleo sobre tela. 60 x 92 cm.
Staatsgalerie, Stuttgart, Germany.


Ouvindo Milágrimas de Itamar Assumpção e Alice Ruiz interpretada por Zélia Duncan:

"Em caso de dor ponha gelo
Mude o corte de cabelo
Mude como modelo
Vá ao cinema dê um sorriso
Ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo
Se amargo foi já ter sido
Troque já esse vestido
Troque o padrão do tecido
Saia do sério deixe os critérios
Siga todos os sentidos
Faça fazer sentido
A cada mil lágrimas sai um milagre..."


Ouça a música aqui...