sábado, abril 22, 2006

Certas Coisas

Devia ser fato. Sempre quando via alguém interessante pegava o celular e começava a falar com um amigo inexistente do outro lado da linha.
"Ôpa! Flávio, como vai?" e assim ia. Falava sobre algo qualquer, fazia piadinhas, chamava atenção da pessoa e quando terminava puxava um assunto sempre com frases do tipo "Esses jovens de hoje..." ou "Ninguém segura esse cara!".
Não devia se sentir necessariamente bem fazendo isso, mas era um jeito fácil de começar uma conversa com qualquer um. E era um bom começo, vamos admitir. Não chegava a ser original. Conhecia mais algumas pesoas que faziam isso, duas das quais eram parentes próximos, meus amigos.
Creio que não devia ser difícil enganar qualquer transeunte desconhecido. Hoje em dia celulares não precisam mais daquele estardalhaço todo com toques. É tudo muito discreto. Há, é claro, aqueles que na carência de alguma atenção, por mais ínfima que seja, configuram seus toques para os mais estranhos tons musicais. Ele não era assim. Fisgava suas presas com as palavras. Um cara qualquer, alguma atendente de telemarketing, um rapaz magro parado no ponto ou uma velhinha simpática. Todos logo se afeiçoavam com o homem que conversava tão bem com seus amigos ao telefone.
Eram vários os personagens que ele criava do outro lado da linha que só existiam na sua imaginação e na das pessoas que ouviam.
Fávio, Márcia, algum sobrinho que adorava falar palavras sem sentido com o tio ao telefone, sua mãe que não ligava fazia tempo.
Houve um dia em que fingiu ouvir a notícia da morte de alguém que gostava muito. Foi nesse dia que o conheci. Estávamos no mesmo banco dum ônibus. Ele na janela.
"Pereira, como vai?" disse ao atender. Esperou um pouco e gaguejou com olhos de espanto "Co-como?"
Ficou pálido. Murmurou mais algumas palavras ininteligíveis e pediu que o homem inexistente repetisse. Desligou, olhou para mim com seus olhos abalados e disse num tom teatral "A morte chega pela distância."
"Meus pêsames" disse cordialmente "Alguém em especial?"
"Uma antiga namorada" disse cabisbaixo. Sem nem me dar o tempo de perguntar completou "Receio que tenha sido a que mais me amou e a mais bonita"
"Lamento"
"Não é preciso lamentar" disse olhando para o nada que corria do lado de fora "A morte é algo natural"
"De fato" concluí.
"Natural porém dolorosa. Um belo dia eles estão alí e de repente somem. E a gente nunca mais os vê. Nunca. Ficamos reféns das fotografias e das lembranças. Já pensou nisso?"
"Prefiro não pensar" confessei. A conversa tomara um rumo que eu não queria que tomasse. Não estava disposto a discutir a existência das coisas e a essência da vida. Só queria atingir meu destino. Além do mais, só ele não sabia que ao retornar o celular pro bolso reparara nas letras que figuravam na tela do aparelho "Sem Serviço". Ou sabia?
"A única certeza da vida: A morte" disse-me em tom filosófico e terminou "E a única certeza da morte é a de que se viveu"
Eu queria muito descer do ônibus. Não queria ser rude, mas também não estava afim de ficar ovindo balelas. Fui obrigado a concordar.
"Desço aqui" disse-me já se levantando "Foi um prazer"
"Igualmente" disse dando espaço para que ele passasse.
Desceu em frente a um cemitério e para meu espanto entrou no local.
O ônibus partiu e só pude ver o homem comprando algumas flores de um senhor.
Não achei palavras para descrever a situação. Não entendia. Tentava ligar alguns pontos que se soltavam com facilidade. Ficou aquele pensamento vazio em minha mente. Aquele sussurro mudo incapaz de explicar qualquer coisa.
Fui obrigado a dormir aquela noite pensando na morte, na existência de tudo e na essência da vida.
Ainda hoje, desprevenido, pego-me pensando em tais coisas...