quarta-feira, fevereiro 22, 2006

"E cai como uma lágrima de amor..."

Entrei no ônibus. Passei a catraca. Sem lugar pra sentar.
Olho pra frente e lá está ele sentado na janela ouvindo alguma coisa no seu walkman.
Ela subiu. Quando o ônibus parou no ponto já havia percebido a presença dela. Passou a catraca. Parou do lado do meu banco. Nos fones era João Gilberto quem cantava as primeiras notas de "Lígia" seguido do saxofone de Stan Getz.
Quanto tempo que não o vejo. Está mais magro e mais alto agora. Bonito.
Pelo reflexo do vidro posso vê-la. Está linda. O cabelo esvoaçando devida velocidade que o ônibus toma. O senhor do meu lado pega sua bolsa.
Será que ele já notou minha presença? Será que lembra de mim? Eu não mudei tanto.
Ela está olhando pra mim. Posso ver no reflexo. Já percebeu que sou eu. Não quero manter uma conversa de ônibus. Falar pra ela tudo que tenho que falar gritando. Será que esse senhor vai descer logo?
Vira pra cá! Olha pra mim! Ou seria melhor que a gente nem se falasse? Mas quero tanto. Saber como anda a vida. Afinal foi meu primeiro amor. Não nos vemos há tanto tempo.
Será que ela ainda me encara como o primeiro amor da vida dela? Nós éramos tão jovens. Lembro até hoje ela falando encabulada que gostava de mim. Eu também gostava dela, claro. Passei um ano inteiro amando-a platonicamente, e só depois ela demonstrou que também sentia o mesmo. Na época ela ainda era mais alta que eu. Achava engraçado. E éramos tão crianças.
Mas o que ele fez foi tão triste. Deixou-me lá com meus sentimentos. Chorando. E chorei por tanto tempo. Mas éramos apenas crianças.
Hoje eu sei que não devia ter feito aquilo. Deveria ter conversado com ela. Não devíamos ter perdido o contato.
Quantas cartas que eu escrevi pra ele mas não pude enviar?
Quanto tempo passou desde que não a vejo? Oito anos? Sete?
Mas o encontrei.
Daí ela me encontrou.
Ficava pensando que a Internet mantinha as pessoas tão interligadas quanto distantes. Mesmo assim o achei. Ao acaso encontrei aquele rosto que eu amei por tantos anos. E meu coração inundou-se de sentimentos. Iríamos nos falar novamente.
E foi numa dessas conversas instantâneas pela internet que ela se comunicou comigo. Com muito cuidado entramos no assunto pendente. Mas a conclusão era a mesma: éramos muito crianças. E logo mudávamos de assunto como se fosse possível ver os rostos encabulados diante das telas dos computadores. Eu não estava em minhas melhores fases com relação ao amor e resolvi propor um convite.
Estou muito confusa com tudo isso. Eu sei que o convite é tentador mas não posso aceitar. Tenho namorado e ele confia em mim. Sei bem o que aconteceria se nos encontrássemos. Foi o que respondi quando ele quis insinuar uma possível retomada. O primeiro amor da minha vida.
Namorado? Na mesma hora eu pensei o que raios ela queria comigo então. Mas depois de refletir o quão egoísta fora minha afirmação resolvi deixar de lado.
Agora ele se fazia de coitado. Dizendo que minha aparição mexera com ele. Só eu sei como eu quis acreditar. Passado. Ele disse que entendia mas que não se responsabilizaria pelo que acontecesse se nos encontrássemos por um acaso.
E o acaso a trouxera de volta. Ao meu lado. Separados por um senhor que parecia que nunca iria descer do ônibus. Eu não sabia o que fazer. Contemplava-a pela janela ainda ao som de João, mas agora sussurrando os tão conhecidos versos "...o coração tem razões que a própria razão desconhece... faz promessas e juras depois esquece..."
Peguei-me esses dias pensando na vida. Em tudo que eu fiz ou deixei de fazer. Nessa vida que levei sem muitas emoções. É triste descobrir isso quando se está velho. Mais triste ainda é levar os dias arrastando-se. Sempre quando penso nisso olho para os jovens. Penso nos meus filhos e netos e peço um bom futuro para eles. Já estou perto de minha casa. Levanto e entrego a bolsa para a bela garota que estava em pé ao meu lado. Assim que ela se senta começa a conversar com o rapaz que estava na janela.
A voz dela está tão doce.
A voz dele está mais grossa.
Os dois conversam com olhares. Já devem se conhecer há um tempo. Até que a moça começa a chorar.
Ele encosta a mão no meu rosto.
Sem saber o por quê. Mas entendendo bem, tiro os fones e me aproximo.
Devem ter uma boa história para ser contada, se amarão pra sempre ou um belo dia perceberão que um não foi feito para o outro.
Ele me beija.
Ela me beija.
Um beijo apaixonado.
Desvio o rosto! Ele entende.
Ela ainda namora.
Impossibilitado de ver o final da trama desço do ônibus e sigo pensando na vida e no casal.
Coversamos um pouco. Ela diz que precisa descer.
"A gente se vê" ele disse. E respondo que sim com a cabeça. Os olhos ainda vermelhos.
Ela desce. Tão instantânea quanto nossas conversas foi o nosso único e verdadeiro beijo. E talvez nunca mais a encontre.
E provavelmente nunca mais o verei.
Nunca mais os verei. Nem saberei o fim do beijo que se mesclou às lágrimas.
Recoloco os fones e uma famosa música termina como um suspiro de um lamento
"...porque o amor é a coisa mais triste quando se desfaz..."


Ouça as músicas Aqui...