terça-feira, setembro 20, 2005

Devaneio

Recebi um papel de uma velhinha que estava na rua entregando essas propagandas que a gente nunca lê.
Recebi o papel. Li. Em letras de forma bem claras pude ler "Recebeu um papel de uma velhinha que estava na rua entregando essas propagandas que ninguém nunca lê."
Guardei no bolso. Subi no primeiro ônibus que passou. Não sabia para onde ia ou qual era sua linha.
Sentei-me ao lado de uma senhora, dessas que a gente nunca dá atenção. Começou a falar do tempo. Disse com licença e desci do ônibus.
Era um lugar estranho. Tudo parecia estranhamente artificial. Prédios subiam aos céus até onde os olhos não conseguiam enxergar. O carros tinham cores berrantes e as bicicletas possuíam três rodas.
Entrei num lanchonete, dessas que a gente entra sem saber por que. Entrei e pedi um café. Um bêbado ao meu lado, desses que a gente finge não dar atenção. Tomei o café que tinha um gosto de qualquer outra coisa, menos café.
Sai da lanchonete.
Andei pela calçada. Muitas pessoas. Alguém gritou meu nome. Virei-me. Nada. Havia um livro no chão. Fino e aparentemente novo.
Ao abrí-lo descobri páginas escritas com várias caligrafias diferentes. Não havia nada na capa, porém na primeira página trazia em letras belas "Não abra a menos que esteja morto".
O coração subiu à garaganta. Por um descuido vulgar li a última página.
"Não entendia o que se passava. Estava confuso. Subiu no prédio mais alto. Não havia porteiro. Chegou ao terraço. Podia ver os aviões ao longe. O Sol se escondia atrás das montanhas. Foi até a beira de concreto. Olhou para baixo. Não havia chão. Só nuvens. Refletiu, decidiu e se jogou."
Coisa mais sem sentido, pensei. Joguei na lixeira mais próxima. Estranhamente a lixeira não possuía fundo. Andei mais um pouco, pensando se conhecia a voz que me chamara a pouco. A voz parecia minha, só que distorcida pelo vento, ou sei lá.
Um carro buzinou e o motorista bradou algo. Saíra da calçada e andava na rua sem notar. Voltei à calçada. Havia uma praça lá perto. Sentei-me no banco. As árvores estavam estranhamente artificiais.
Um velho sentou-se ao meu lado, desses que a gente também nunca dá a mínima.
Encare os fatos, disse o velho, você não é nada.
Tenho nome, tenho uma história de vida, sou alguma coisa. Virei mas o velho sumira.
Saí correndo. Um garoto me atropelou com a bicicleta de três rodas. Caiu e e me xingou. Disse que eu não passava de um devaneio tolo de um qualquer.
Eu sou alguém, gritei.
Pense bem, disse o velho que estava agora atrás de mim.
Corri até perder a praça de vista. Não era possível.
Como podia alguém ser devaneio de outrém?
Não entendia o que se passava. Estava confuso. Subi no prédio mais alto. Não havia porteiro. Cheguei ao terraço. Podia ver os aviões ao longe. O Sol se escondia atrás das montanhas. Fui até a beira de concreto. Olhei para baixo. Não havia chão. Só nuvens.
Refleti, decidi e me joguei.

Pobre devaneio.



Ouvindo "Estopim" com Ná Ozzetti e Luiz Tatit: "Nada é tão fácil no início... Nem no percurso nem no fim... Nada é tão natural... Nada é tão trivial... Nem uma flor... Nem todo jardim"

Obs: Não precisa fazer sentido... Viver já basta...

terça-feira, setembro 13, 2005

Vontade...

Vontade de escrever algo melancólico...
Vontade de falar palavrões para quem estou com raiva...
Vontade de ter mais vontade...
Sei lá...
Vontade de mandar algumas pessoas irem se foder...
E dizer para outras que os amo...
Vontade de beber até tarde e dormir profundamente
pra depois acordar com aquela dor de cabeça e com a bexiga apertada...
Vontade de falar sozinho...
Vontade d enão ir trabalhar...
Vontade de vadiar...
Vontade de ler aquele livro estorvante do Chico que está na mochila
mas não passei da décima página...
Vontande de tocar violão...
Vontade de aparecer e depois
Desaparecer...
Vontade de amar...
Vontade de independer de qualquer ser humano...
Vontade de conversar...
Vontade de acabar com essas reticências...
Vontade...
Tanta vontade que no final desse texto...
Perdi a vontade...

Acho que o segredo está sempre em conhecer novas pessoas...

Ouvindo "Yolanda" com Chico Buarque: "Tu mano...Tu mano... Eternamente... Tu mano..."

quinta-feira, setembro 08, 2005

Conversando com Deus

"Sente-se, por favor" disse Deus ao perceber que seu novo paciente havia entrado. O homem de meia idade agradeceu e acomodou-se no divã. Não era um divã qualquer. Aquele estofado tinha um quê de qualquer coisa, ele não entendia bem, mas talvez, algo divino. Aquele velhinho que o atendera também. A barba longa, o olhar distante, o manto branco, pelo menos era o que parecia, os óculos redondos, as sandálias aparentemente confortáveis, e até mesmo a plaquinha em sua mesa, escrito em letras grossas e amarelas "Deus". Tudo aquilo tinha um quê de, vocês sabem, divino.
Não que o velhinho simpático fôsse realmente Deus, mas o homem cada vez mais acreditava que esse tal de "Deus" poderia lhe ajudar. É claro que ele corria o risco de ser atendido por um louco varrido com uma crise de egocentrismo aguda, mas não, o cartão de visitas que achara na rua dizia "Converse com ninguém menos que Ele", e de fato, como acabara de concluir, aquela criatura senil possuía lá seu toque de "todo poderoso".
"Ecuta" começou vacilando "Eu não sou adepto à nenhuma religião ou crença..."
"Meu jovem" retrucou Deus "E quem disse que eu sou?"
"Eu sei, mas quando digo que não sou adepto, acredite, eu sou totalmente desligado..." parou por ums egundo para procurar alguma expressão que condenasse o velhinho, algo que mostrasse que ele estava decepcionado, mas não. Aquela face por trás da barba branca não movia um músculo e mantinha aquele sorriso brando que começava a incomodar o homem que, passado o segundo, voltou a falar "Não rezo! Não vou à missa! Não agradeço pela comida! Bebo! Enfim... Eu sou o contrário de qualquer cristão..."
"Se você conhecesse metade dos cristãos que conheço levaria um susto ao perceber o quão errada foi sua afirmação..." brincou Deus na sua malícia milenar.
O homem sorriu e, desesperado, perguntou
"Olha! Você vai mesmo me ajudar?"
"Meu amigo, eu sou Deus"
"Claro! Deus... Eu tinha me esquecido" disse ironicamente, e Deus continuava com aquele sorriso confortável.
"Deite-se" pediu "Diga-me o que te atordoa" pegou uma prancheta, dessas que nos filmes os psicanalistas sempre jogam cruzadinhas, mas não desta vez. Aquela prancheta tinha todo um quê de, acreditem, divino.
"Eu não sei bem... Todo esse caos... A situação do mundo... Isso me deixa infeliz..."
"Você está preocupado com o Mundo?" perguntou Deus espantado.
"Sim! Algum problema?" não se importando com o espanto divino.
"Interessante..." anotou na sua prancheta algo que não deu pra distinguir bem, mas com certeza era algo divino, e continuou "Fale-me mais sobre isso..."
"É um sentimento que vem de dentro... De vez em quando me dá uma vontade de levantar e mudar tudo no mundo, mas daí lembro que eu sou apenas, você sabe..."
"Você" completou.
"Isso... Eu... Um mero ser humano... Você já sentiu isso?"
"Bem... Na verdade não, afinal, não sou bem um ser humano, mas entendo o que quer dizer... Eu sinto isso só que ao contrário, sabe? Eu acordo todo dia disposto a mudar tudo com um estalar dos dedos, mas daí eu lembro que sou Deus, e não posso fazer tudo isso."
"Como assim? Eu pensei que Deus fizesse o que ele bem entendesse" espantou-se o homem, que não acreditava naquele papo de Deus, mas estava gostando da brincadeira.
"Antes era tudo fácil, se eu quisesse criar um bicho amarelo, com pintas marrons e um pescoço longo, eu criava e listava-se mais um ser para a fauna do mundo, assim como se eu quisesse disseminar a idéia num homem de nome estranho de que tudo isso não é minha obra e sim um processo muito lento de evolução, eu fazia e estávamos bem. Mas hoje não" lamentou-se com um suspiro "As coisas mudaram, filho"
"Mas, ora bolas, você não é Deus? O todo poderoso? O faz tudo? O manda chuva?" indignou-se o homem.
"Isso é passado, filho. Pra se fazer qualquer coisa hoje é preciso um relatório, um memorando, muitas assinaturas, algum carimbo de algum setor celestial, o toque de um anjo da mais alta classe e por fim, minha assinatura. Isso leva tempo."
"Muito tempo?" interessou-se.
"Pra você ter uma idéia, há dois mil anos eu entrei com uma ação para que proibissem essa coisa de crucificação. Foi um escândalo. Todos disseram que mudaria muita coisa, acabaria com costumes milenares e essas coisas, mas mesmo assim, como eu ainda tinha alguma influência, abriram com o processo. Acabou que só liberaram uns mil anos depois. Tarde demais, se é que você me entende." Deu uma piscadela.
"Entendo"
"Você entende? Qualquer coisa que eu faço eles dizem que é abuso de poder. Foi quando certa vez eu conversei com uma filósofo, uns cem anos atrás, e disse pra ele que Deus estava morto, porque assim eu me sentia. Não é que ele gostou?" sorriu. Seus olhos seguiam distantes, em algum ponto da sala onde o homem não identificava, e continuou "Depois que ele começou a disseminar isso, volta e meia, ouvia alguém dizer nos corredores celestiais 'Isso só pode ser coia do barbudo'. Quase me destituíram do cargo. 'Onde já se viu? Negar a própria existência?' eles bradavam" e ele sorria. Começaram a lhe cair lágrimas pelo rosto.
"Está tudo bem?" preocupou-se o homem, que já não estava nem aí para o mundo, ele queria mesmo era continuar aquela conversa com Deus.
"Está sim, obrigado. Pode me trazer um copo d'água?" pediu enxugando as lágrimas no manto branco.
O homem foi até a cozinha pegou o copo com água e voltou. Deus estava na janela. De costas ele disse:
"Entendeu agora o quanto é difícil acordar e descobrir que é Deus?"
"Etendo" entregou-lhe o copo.
Todo aquele ar divino desaparecera. Agora ele só via um velhinho bebendo água. Um velhinho que tinha muita imaginação e anos de vida e, pensou ele, deveria escrever um livro sobre isso. Esse velhinho deve ter tido esse mesmo sentimento de incapacidade que o tomara nesses tempos e daí resolveu começar a conversar com pessoas assim, como ele...
"Bem..." disse o velhinho apontando para o relógio "Creio que o tempo da nossa consulta acabou"
"É mesmo" pegou sua jaqueta que estava no divã e saiu. Deixou a porta aberta e ficou lá olhando aquele frágil velhinho que ainda estava virado para janela, onde se podia ouvir o barulho dos carros passando na avenida lá embaixo. A tarde caía.
"Amanhã no mesmo horário?" perguntou o homem só para confirmar.
"Eu receio que não, filho" respondeu o velhinho. E a porta se fechou lentamente.
Só quando o homem já estava dentro do ônibus, indo pra casa, foi que reparou que estavam sozinhos na sala e que o velhinho estava na janela quando a porta fechou. Provavelmente algum dispositivo automático, pensou. Não entendera também aquele "Receio que não". Mas de todo modo, estaria lá no outro dia.
Foi.
Não havia mais plaquinha alguma na porta. Aquele parecia um apartamento qualquer.
No térreo ele indagou para uma senhora que saía do prédio sobre o consultório e o velhinho. Ela disse que morava lá há muito tempo e nunca houve sequer um velhinho morando naquele andar, muito menos um consultório.
"Como não? Eu tenho o cartão aqui!" mostrou o cartão para a senhora que devolveu.
"O Senhor está bem?" indagou.
Ele pegou o cartão de volta. Estava em branco. Nos dois lados.
"Escute" começou a senhora "Eu conheço uns bons médicos aqui do bairro. Se quiser..."
"Não obrigado!" E saiu do prédio confuso.
Tudo aquio era muito estranho para sua compreensão.
Andou pela calçada que estava apinhada de pessoas e vendedores ambulantes, quando viu um velhinho no ponto de ônibus. Era ele. Só podia ser. Correu até ele, mas um ônibus chegava e o velhinho entrou.
O homem não conseguiu entrar e saiu correndo atrás do veículo. Lá dentro, viu o velhinho que vestia roupas de inverno e um chapéu verde musgo. Aquele ser, que novamente possuía um quê divino, acenou para o homem e piscou para ele.
Ele corria atrás do ônibus que não pararia.
Vencido pelo cansaço, parou no meio de um cruzamento e deu uma última olhada para Deus.
Estava triste. Queria conversar mais com Ele. Tanto a aprender. O sentido da vida. A resposta para tudo. Estava triste.
Não entendia bem, mas também estava feliz. Como aquelas coisas alegres que fazem você chorar de tristeza. Assim estava ele, só que ao contrário. Estava triste, e chorava de alegria.
Saiu do cruzamento. Respirou fundo, e foi pra casa.



Ouvindo "Acho" de Carlos Careqa: "Acho que fiz meia música pra você... Aceita minha meia música... Desculpa o meu vexame... De fazer meia música pra você..."

Obs: Quando fiz o texto imaginei o John Cusack fazendo o papel do homem, não sei porque... Mas enfim... O seu "homem" pode ser qualquer um...