segunda-feira, outubro 23, 2006

Outro ônibus.

Há sempre regras de como se comportar nos coletivos, dentre essas regras há normas que dependem em cada caso. São coisas simples que vão desde segurar a sacola pesada de alguém que está em pé até xingar educamentente a pessoa que sem razão qualquer deu um pisão no seu tão indefeso e inocente pé.
São, geralmente, os mesmos tipos de seres humanos que pegam ônibus. Dentre estes seres, há uma gama que vai se dividindo, tornando-os únicos a cada viagem. Há desde a mulher gorda, a qual pensam que está grávida e dão lugar para que ela sente, até o velhinho que já beira os portões celestiais e que se recusa a sentar a todo custo só para dar lugar à jovem que está ao seu lado e atrai a atenção de muitos passageiros, seja por interesse, seja por inveja. Sempre hão de coexistir a mulher encrenqueira e o trabalhador revoltado com a política. Ambos vêm no mesmo pacote e exclamam seus verbos quase que ao mesmo tempo à primeira freada brusca, só que em direções diferentes. A mulher xinga o pobre do motorista que não pôde fazer nada para evitar que aquele carro, o qual o preço está a milhares anos luz da sua carteira, entre bruscamente na frente do ônibus, enquanto o homem começa a reclamar da política dizendo que em determinada época tais coisas eram melhores, independente de quem seja o governante. Juntos eles agregam aliados, que logo se separam assim que um ou outro desce do ônibus ou então começam a discutir sobre outra coisa dentro ou ao redor do veículo.
Dentro de coletivos não há o conceito de educação. Quando algum passageiro chama o outro de mal educado, este abre uma fenda no espaço-tempo contínuo, já que tal ornamento xingatório é considerado um paradoxo maior do que acender um fósforo dentro dum lago na Antártida e ainda assar uma picanha para o jantar da sexta-feira santa. Todos, num ônibus, em qualquer situação, são mal educados, tornando-os assim todos pessoas educadas. Uma cotovelada no rim direito é quase sinônimo de "Com licença, minha senhora, seria um incômodo se eu pudesse passar por aqui?" ao cabo que a cotovelada no rim esquerdo do primeiro seria claro sinônimo de "Claro, meu bom homem, sinta-se a vontade!" seguido da pisada no pé referente ao cordial "Muito obrigado, jovem dama." finalizando a passagem com o chute na canela traduzido como "Não seja por isso!"
Há uma séria divisão dentro dos ônibus. Fato que me preocupa vez em quando. Se há algo que pode interferir na harmonia dos coletivos, essa coisa é o fato de haver pessoas sentadas e pessoas de pé. Sou franco defensor de qualquer lei que defina que, nos ônibus, as pessoas devem estar, ou totalmente sentadas ou totalmente de pé. Estar sentado gera a indiferença. O fato de estar sentado anula os problemas dos arredores. Estar em pé, gera a inveja. Ambos sentimentos levam à discórdia. Não há discórdia entre membros sentados e mebros de pé, mas sim a discórdia dos próprios membros de pé que, ao invés de lutarem juntos por uma solução viável e que venha a curto prazo, digladiam-se entre si para tomarem o lugar do primeiro que deixa o assento vago.
Certa feita, eu, como bom usuário dos coletivos, entrei no ônibus notando que não havia mais lugar disponível para me sentar e me anestesiar no mar da indiferença. Não poderia ler um livro, ouvir música ou muito menos dormir. Afoito para fazer tudo isso, resolvi entrar na guerra pelo assento. Atento, percebi os principais suspeitos que desceriam em breve do veículo. Foquei meus olhos para perto da porta de saída, local comum para quem desce logo. Não havia ninguém que eu já conhecesse de vista e, devido a viagens anteriores, sabberia previamente que desceria em poucos minutos. Percebi uma garotinha e a mãe da mesma. Bingo! Essas não demoram muito dentro de ônibus. Cheguei perto, o assento seria meu assim que elas descessem. Uma senhora chegou ao meu lado. Não reclamei, uma vez que eram duas passageiras que desceriam. Haveria lugar para ambos. Solidarizei-me com a senhora e até pensava em conceder-lhe o lugar à janela.
A mãe olha para a senhora e pede para a filha sentar em seu colo, dando lugar para a primeira. Ainda não era um problema. A senhora sentaria e logo seria minha vez.
Não seria um problema até o momento em que a mãe disse "Senta aqui, senhora. A gente já vai descer logo."
Como um relâmpago, sem nem que a senhora tivesse sentado, uma mulher que beirava seus quarenta anos chegou ao meu lado ocupando o lugar onde a velhinha estava de pé. Não só ocupando como também me empurrando com o braço, tirando-me da minha posição original. Aquele braço na minha frente, me afastando, como se eu fôsse um incômodo.
Ainda tinha certa gota de esperança, mas esta secou assim que mãe e filha desceram do assento e a mulher-braço conseguiu realizar seu intento oferencendo-se ainda para segurar minha mochila, a qual sempre deixo no chão para que não peçam para segurar.
Descobre-se que ainda temos muito a aprender com a vida, mas ainda sonho que um dia, todos poderão sentar-se nos ônibus, sem distinção ou preconceito.

quarta-feira, outubro 11, 2006

Apesar do pesar

Estavam deitados. Os pés de cada lado. Cabeça com cabeça. Olhavam para o teto imaginando um céu estrelado e uma Lua cheia, mas só tinham o teto e contentavam-se com o mesmo. Já estavam satisfeitos por estarem um ao lado do outro.
Em suas mentes passavam milhares de pensamentos diferentes e não sabiam como expressá-los. Perguntas, respostas e idéias.
"No que está pensando?" disse ele.
"Não sei bem. Muitas coisas." respondeu ela deixando ares de dúvida.
"Estou entre essas coisas?" arriscou.
"Talvez" disse ela com um sorriso leve no canto dos lábios que ele não percebeu "No que você está pensando?" completou ela.
"Pode ser em você?" disse ele ao virar-se de lado enquanto ela fazia o mesmo.
"Não tem nada melhor?" ironizou.
"Talvez, mas no momento é você mesmo." disse ele pensativo.
Ela compreendia que naquele momento, naquele exato momento, só podia ser ela. Talvez depois em outro dia, outro momento, seria outra, mas agora era ela.
Sentia-se bem, mas sentia-se mal. Em sua mente corriam outros pensamentos além dele. Muitos outros.
Não que não gostasse dele, sentia lá alguma coisa. Ficava feliz junto a ele. Sorria junto a ele, mas sentia certa pena.
Via aqueles olhos apaixonados. Aqueles olhinhos infantis que a encaravam e diziam, sem som, um ingênuo "quero estar com você".
Conversavam muito com olhares e gestos. Ele talvez não entendesse todos os dela mas ela, sim, ela entendia os dele. Eram olhares em formação, desajeitados, confusos e puros. Como na vez em que ela teve de dizer "não" e viu nos olhos dele o mais sincero e dolorido "Por quê?". Comovida, a única resposta que pôde dar foi um beijo e um adeus.
Ele sabia de muitas coisas que não devia fazer ou falar. Aprendera bastante com tempo. Mas também sabia que seus olhares às vezes entregavam o jogo.
Não sabia se gostava tanto assim dela. Sentia-se bem com ela. Ficava feliz. Sorria. Sabia que ela sentia o mesmo, mas talvez não fôsse equivalente.
Ao passo que ia pensando, um olhando para o outro, sentiam-se relaxados e seus olhos já iam fechando.
Passou a mão pelo pelo já quase adormecido rosto dele. Deu-lhe um leve beijo e levantou. Pegou suas coisas e saiu de leve, sem muito barulho. Tinha plena noção do clichê que cometia. Saindo sem deixar recado. Já fizera muitas vezes a mesma coisa. No outro dia, como de praxe, ele ligaria, marcariam novo encontro e ela acabaria cedendo novamente a ele. Talvez gostasse mesmo dele. Talvez devesse ficar dessa vez.
Foi embora. E no rosto correu-lhe uma lágrima.
Ao acordar, hesitou em abrir os olhos. Sabia que não a encontraria, e dos olhos fechados, mescladas em raiva e tristeza, correram-lhe lágrimas.
Tomou decisão importante na vida: dessa vez, não ligaria.
E assim o fez.


Ouvindo Los Hermanos em "Morena":
"Pra nós, todo o amor do mundo
Pra eles, o outro lado
Eu digo mal me quer
Ninguém escapa o peso de viver assim
Ser assim, eu não
Prefiro assim com você
Juntinho, sem caber de imaginar
Até o fim raiar..."


E Caetano em "Queixa":


"Um amor assim delicado
Nenhum homem daria
Talvez tenha sido pecado
Apostar na alegria

Você pensa que eu tenho tudo
E vazio me deixa
Mas Deus não quer que eu fique mudo
E eu te grito esta queixa..."


Ouça as músicas aqui ou aqui.

segunda-feira, outubro 02, 2006

Os homens

Caíram quando descobriram que perderíam seus poderes. Foi numa tarde de domingo.
Estavam todos reunidos na famosa sala de reuniões quando o chefe chegou.
Olhou para todos com um ar de arrogância e pena e disse "A partir de amanhã vocês não terão mais poderes!" e saiu da sala deixando todos com dúvidas.
Era inconcebíbel que ficassem sem seus poderes. O que seria deles?
Alguma piada do chefe, provavelmente.
Estavam errados. Na segunda-feira foram obrigados a fazer o máximo de esforço para as mínimas obrigações.
Tiveram de dirigir, lavar a louça, limpar a casa, trabalhar de verdade, pegar ônibus e cuidas dos bebês. No começo até pareceu divertido mas passadas duas semanas um deles se levantou e disse "Até quando, chefe? Não agüentamos mais!"
Desse, não se ouviu falar por um bom tempo.
E seguiram suas vidas. Seus cotidianos. Suas rotinas.
Estavam para bolar um plano, algo que trouxesse seus poderes de volta, mas tudo devia ser bolado na mais secreta movimentação. Ninguém deveria suspeitar.
O que não imaginavam é que sua rede de informações fora quebrada desde o início e dentre eles havia um traidor que, a mando do chefe, espionáva-os e reportava um boletim semanal sobre os acontecimentos.
Estava tudo preparado. Entrariam na sala de reuniões e roubariam o elixir do poder. Uma garrafa que se encontrava no centro da sala e aquele que bebesse do líquido nela contido teria seus poderes de volta.
Não podiam aceitar essa vida rotineira. Vida sem graça.
Não suportavam a idéia de dedicar um terço de suas vidas aos filhos, outro terço ao trabalho e outro terço à velhice. Era doloroso demais pensar nisso.
A única escapatória era terem seus poderes de volta.
Com muita dificuldade e depois de subornar alguns guardas, conseguiram entrar na sala de reuniões. O líder, que era o mais forte, pegou a garrafa.
Ia levar para os amigos quando um estrondo forte cruzou a sala confundindo-se com o espatifar da garrafa no chão. De trás do líder que estava caído no chão, provavelmente morto já que não tinha mais poderes, surgia o chefe com uma arma na mão e um sorriso no rosto. Outro tiro. E lá ia o traidor para o chão, sem que os outros soubessem que esse era o traídor.
Apavorados, todos assistiam à cena abismados. Sabiam que o fim estava próximo, mas só não entendiam o porquê.
Chegaram a pensar (pensavam em conjunto): "Morrer sem propósito é melhor que viver sem própósito?". Pensaram e decidiram.
Prostaram-se diante do chefe decididos a morrer.
Porém o chefe não se comoveu com tal atitude e deixou que vivessem.
Talvez se tivessem algum propósito para morrer, mas não tinham, e foram fadados a viver.