sábado, julho 29, 2006

Cigarros e olhares

Da ala de fumantes, eu era o único que não fumava. Assistia passivamente às curvas formadas pela fumaça que saia das bocas e narinas de todas aquelas pessoas. Cada qual com seu cigarro. Homens, mulheres, idosos, jovens, amigos e tantos outros. Várias marcas: Luck Strike, Malboro, Free... Ritual ali se fazia. Uns, quando o cigarro acabava, sacavam outro do maço, ou da caixa. Outros já tinham um cilindro na mão antes mesmo de acabar e outros esperavam e, como que me acompanhando, miravam a cena. Cena cinza, olho ardente, pulmão inconseqüênte.
Cheguei a questionar o real motivo da minha visita à ala de fumantes. Confesso que várias vezes me peguei pensando em fumar, mas não chegava a ponto de isso se tornar um desejo. Não queria. Mas lá estava eu, sem um cigarro se quer no bolso.
Apenas observando.
Notava os movimentos alheios. Alguns delicados, outros frenéticos.
Cheguei à conclusão de que certas pessoas não nasceram para fumar. Como feias ficam ao colocar um cigarro na boca. E o cheiro que alguns exalam. Insuportável. Sem falar no hálito. Outras pessoas que também fumam não carregam tais defeitos. Não sei porquê. Talvez estava ali para tentar descobrir. Por que não assistir calmamente ao invés de acusar do lado de fora praguejando possíveis doenças e malefícios?
Fui ver pra crer. E lá descobri coisas.
Fumantes possuem um pacto inconsciente. Uma espécie de solidariedade conjunta. Dividem o fogo, dividem o espaço, e se não forem egoístas, dividem até o próprio cigarro. Claro que há o fumante que guarda todos os seus cigarros para si. Há o ansioso que fuma tantos de uma vez que não sobra nem um para os colegas. Conheço muitos auto-confiantes "Paro quando quiser". Outros já se dão por vencidos "Não devia ter entrado nessa! Agora não tem quem me tire". Há sempre os conselheiros "Tá vendo isso aqui?" apontando para a bituca já fumada "Isso acabou com a minha vida! Não cai nessa não" e há os incentivadores "Experimenta! Sinta a briza..."
Foi quando um jovem, com seus dezeseis ou quinze anos de idade abordou um homem que beirava seus quarenta anos.
"Tio! Tem um cigarro?"
O homem expele a fumaça, olha o garoto numa mistura do que parecia raiva e pena e rebate:
"Quantos anos você tem?"
"Dezessete" responde, revelando meu erro na estimativa mas não alterando em nada o olhar do homem.
"Você não acha que é muito jovem para fumar?"
O garoto responde sem dizer uma palavra, encara o chão por alguns segundos e retorna o olhar para o homem na esperança de ainda ganhar o cigarro.
O homem deu o cigarro sem dizer palavra alguma e voltou à sua posição incial. O garoto pronunciou algo como um "Valeu" e voltou ao grupo de amigos.
Ao me retirar do local não pude chegar à qualquer conclusão que se acomodasse às minhas tão preguiçosas e falíveis idéias. Talvez até suspeitasse o que se passava na mente do garoto, mas não tinha idéia do que pensava exatamente o homem.
Rendeu-se ao pedido por quê? Aquela que pareceria culminar numa cena comum em que o homem mais velho dá conselhos de vida e sermões ao mais novo virou uma simples cena de troca de olhares e um cigarro. Simples cena que me remeteu a pensar a condição do homem, não do homem como ser humano, mas daquele homem. O que pensou na hora?
Seria hipocrisia negar o cigarro? Talvez ele tenha começado da mesma forma.
Disse sim. Talvez tenha discordado de si mesmo por um momento, mas disse sim.
Talvez soubesse que se dissesse não, o garoto pediria para outro. Para mim talvez, que seria obrigado a dizer com ares de constrangimento "Não fumo" ou simplesmente alegaria não ter um cigarro. E dai pediria para outro e outro, até que realizasse seu intento. Talvez o homem tenha pensado nisso tudo, ou talvez só tenha pensado no fato de ficar com um cigarro a menos.
Voltei pra casa pensando na fumaça, nos cheiros, nos fumantes e nos não-fumantes.
Ao me deparar com o símbolo acompanhado do anúnico "Não Fume", fiquei tentado a escrever logo acima "Se preferir"...

sábado, julho 22, 2006

Frágil

Entrou no ônibus. Manhã fria.
Seguia apreciando a paisagem, como era de costume, porém topava com o emprecilho da janela embassada pela respiração dos muitos passageiros. Quase chegando no ponto final, um senhor vestido de terno senta ao seu lado.
Num súbito lance abre a janela e diz "Sabe do surto de tuberculose não?"
"Ouvi dizer" mas não ouvira.
"O povo toda manhã reclama que eu abro a janela"
"Imagino" dizia ao sentir o vento frio bater no rosto.
"Mas não me importo! Prefiro sentir friozinho do que ir pro caxãozinho" disse o senhor em tom bem humorado.
Concordou sem muito ânimo, fato que colaboria para o fim da conversa, que nãoa conteceu.
"E imagina a gripe aviária... Saiu um estudo... Numa revista... A gripe está prevista para chegar em setembro por aqui..."
"É mesmo?" disse pouco espantado. Como alguém pode calcular a previsão de chegada de um vírus num país? "Loucura" pensava "Esse cara já tá querendo demais"
"É bom já ir se cuidando" completou o senhor.
Desceu do ônibus sem fazer muita questão de esperar pelo velho da tuberculose.
Antes de pegar o metrô, pôde vê-lo sentado num banco conversando com uma mulher. Pobre vítima. Devia estar falando do quanto as pessoas devem ter mais cuidado ao fazer isso ou aquilo.
Ele nunca soube, mas duas semanas depois o senhor veio a falecer. Se alguém lhe contasse, diria na primeira chance "Foi tuberculose, não?"
Mesmo sendo um grande ironia lhe responderiam que não. Era cancêr. Desces que vão crescendo, crescendo e num belo dia explodem e dão somente alguns meses de vida à pessoa.
Se soubesse, talvez seria mais compreensível com o velho.
Talvez suspeitaria que toda aquela preocupação com os outros não seria só neurose.
Se soubesse talvez, abriria todas as janelas de todos os ônibus em todas as manhãs.
Se soubesse, é claro, mas não soube.

sábado, julho 08, 2006

Rituais

Pego mochila, bilhete único, chave, carteira e saio. De porta ainda aberta aperto o botão do elevador para dar tempo de fechá-la e esperá-lo.
Entro. Desço. Homem entra no quinto andar.
"Bom dia" digo.
"Bom dia" diz o homem que completa numa fúria cotidiana "Cacete! Tenho que ir lá pra Paulista só pra trocar um cartão"
"É" concorda num suspiro sutil expressando sua conformidade para com os fatos. Quantas vezes não tive que ir a lugares mais longes por coisas tão supérfulas quanto um cartão? Cartão de banco, supus. Coisa muito útil para muita gente nos dias de hoje. Inclusive para mim e para o homem do elevador, supus novamente.
Momentos sufocantes esses de elevador. Alívio. Chega o térreo que é o primeiro andar.
Homem vai por um lado (o lado dos carros) e se despede com um "Até". Eu vou para o outro portão. Antes de entrar na condução, já nos degraus de entrada, o veículo andando. Lembro-me "Celular".
Desço. Volto para o prédio. Apressado, perdi muitos minutos. Mas nada comparado à desolação que sentiria sem tamanho pequeno aparelho. Sem horas, sem poder ser encontrado. Terrível!
Quanta besteira, meu Deus!
Volto para ele mesmo assim.
Subida de elevador. Entro. Lá está. Quieto. Morto. Num canto.
Pego, coloco no bolso. Suspiro de alívio.
O mesmo ritual. Aperto o botão para chamar o elevador enquanto fecho a porta.
Entro. Desço.
Quinto andar. Homem, o mesmo homem, entra.
"Opa!" ele diz e completa com mais uma de suas fúrias cotidianas "Cacete! esqueci o celular, acredita?"
"Eu também" digo demostrando enorme euforia com um largo sorriso em face à coincidência, mas que logo se apaga tendo em vista a inócua reciprocidade para tal.
"Foda" arremata o homem não mais numa fúria, mas num próprio cotidiano.
"É" falo para mim mesmo.
Saímos. Ele vai pro mesmo lado de antes, e eu vou para o meu.
Demora na espera da condução.
E vou embora pensando em cotidianos, fúrias, tecnologias, coincidências e amizades impossíveis.


Ouvindo "Ritual" de Cazuza:
Ao mesmo Deus que ensina a prazo
Ao mais esperto e ao mais otário
Que o amor na prática é sempre ao contrário
Que o amor na prática é sempre ao contrário
Ah, pra que chorar
A vida é bela e cruel, despida
Tão desprevenida e exata
Que um dia acaba...
...e "Leve" de Chico:
Pense que eu cheguei de leve
Machuquei você de leve
E me retirei com pés de lã
Sei que o seu caminho amanhã
Será tudo de bom
Mas não me leve...