domingo, junho 25, 2006

Sobre limões, laranjas e urubus

Procurava incessantemente. Nas ruas da cidade, nas folhas das árvores, no sorriso dos amigos. Procurava mas não encontrava. Diziam que até faria uma viagem para encontrar, outros murmuravam pelos cantos "Lá é que não acha". Algumas pessoas, entrevistados por ele, diziam "Sua procura é inútil, sua pesquisa: infundada". Mesmo assim não desistia. Não era gente de desistências. Procuraria e acharia nem que isso lhe custasse uma vida.
Numa tarde, quando o Sol se punha atrás da serra nublada pela poluição que dava ar cinzento à vermelhidão emanada pelo acontecimento, pensou ter encontrado o que procurava. Tolo devaneio. Ainda estava longe.
Noutro dia, no ônibus. Mão no queixo, cotovelo no apoio, olhos vidrados no nada da janela, ouvidos pregados no tudo do ônibus. Fugaz momento acreditou ter encontrado o que queria, se não era aquilo estava muito perto de ser. Só mais um pouco seria necessário. Foi acordado pelo freio frenético executado pelo motorista que minutos depois xingava aos berros recheados de palavrões o homem que entrara à frente do ônibus sem prévio aviso.
O nada que figurava na janela começou a tomar forma. Virou rua esburacada, cachorro se coçando preguiçosamente num canto acolhido pelo Sol que não ardia, mulher com sacola de feira e filho da mesma atiçando com pedaço de pau o até então despreocupado cachorro, moça fazendo-se bonita à janela da casa com tijolos à mostra, homem velho que pendurava roupas no varal. O tudo que era só ouvidos dentro do ônibus virou nada. Virou balbúrdia sem sentido, xingos ao motorista, frases desconexas, reclames contra corruptíveis políticas que morriam surdos, ali, naquele mesmo ônibus. O nada de fora, num instante, virou tudo.
Sentiu o que talvez fosse fato. Naqueles momentos passados, quando quase achou o que procurava, o freio não fora mera interrupção, fora sim, preparação. Senão um pretexto para trazê-lo a este momento que presenciava agora e que lhe dava novas sensações.
Desceu da condução que partira aos solavancos em razão dos buracos da rua e sentou no banco do ponto. Escondendo a euforia (nunca chegara tão perto) assistia à cena.
Quase tudo: estático. Mulher da sacola de feira chamando o filho que ficara para trás e ainda atiçava o cachorro que começava a demonstrar ares de impaciência, moça que se fazia bonita arranjara companheira na janela à frente da sua, homem velho das roupas no varal começava a terminar sua missão. Avião roncava lá longe, no alto, confundindo-se com os urubus que bailavam em círculo à procura de algo. O vento trazia uma neblina, causa dum fogo ateado por garotos num sofá velho que fora deixado em terreno vazio, baldio.
Descem a rua três garotos, talvez os mesmo ateadores do fogo. Pedras nas mãos começam, de longe, atiçar o já atiçado cachorro que ao se sentir acuado faz de vítima seu primeiro atiçador. A mãe solta a sacola deixando limão, laranja, verduras espalharem-se pela rua e corre aos gritos para socorrer o filho ferido na perna. Aos gritos de "Passa!" espanta o cão que, talvez numa vingança instintiva, corre em direção aos outros garotos que já não mais carregam as pedras nas mãos. As moças que se faziam bonitas assistem à cena numa mescla de risos e pena. O velho já não fazia parte da cena. Sobraram apenas as roupas balançando ao vento e pingando como num ritual.
Assistia à cena como se essa o entorpecesse. Ali, naqueles momentos simples, naquela vida comum, alheia, cheia de detalhes estava sua resposta. Em breve o Mundo conheceria seus segredos. Escreveria um livro, iria à televisão, seria, enfim, lembrado por toda a eternidade, senão por um largo tempo.
Ao ver a sacola de feira caída, seu conteúdo espalhado e a dona da mesma socorrendo a criança, foi recolher limão, laranja e verduras. Antes foi surpreendido pelo freio frenético de novo ônibus. E, com força, foi jogado ao chão. No ônibus, novo motorista olhava apavorado. Lançava desculpas aos passageiros dizendo que o homem entrara à frente do ônibus sem prévio aviso. Um possível suicida. Ainda no ônibus, olhos atentos, apavorados e curiosos viam o homem caído. Alguém já ligara para o resgate.
As moças que se faziam bonitas entraram pra suas casas, o velho foi à laje, onde estendera as roupas, ver o ocorrido. A mãe não sabia se acolhia o filho ou espantava-se com a cena.
Respiração fraca. Ele contemplava de baixo os olhares. Alguma árvore fazia-lhe sombra. Reparou em cada olhar, na lataria amassada, na sombra da árvore, na neblina que cessara, no avião que roncava mais baixo, nos urubus que ainda voavam em círculo. Algum buraco da rua avermelhava-se junto com um limão. Um limão, na calçada oposta algumas laranjas, verduras, o Sol que não ardia, o barulho das sirenes, e finalmente tudo era tudo. O tudo de fora, o tudo de dentro.
Seus olhos cerravam-se e o cansaço obrigava-lhe a continuar deitado.
Estendido.
E tudo ficou estático. Parou.
E ficou.

quinta-feira, junho 08, 2006

Aperto

E bate uma saudade
que eu não sei bem de que
Bate um jeito estranho
que me dá não sei porquê

Saudade de coisa perdida
coisa por vir
coisa que não sei

E que será saudade senão
a falta daquilo que se quis
ou
que há de se querer?

Saudade do futuro.
Saudoso futuro.

E o passado traz o aperto,
futuro a angústia
a ânsia
Ânsia de viver todo o mundo
em tão pouco tempo

Passado é ânsia perdida
Ânsia passada.

Futuro é incerto, obscuro
Ansioso.

Saudade que bate não sei de que.
Saudade de sorrisos,
beijos,
palavras,
carinhos e confortos.

Saudade que vai e que vem.
Saudosa saudade.


Ouvindo Bicho de Sete Cabeças com Zeca Baleiro

"Não dá pé não tem pé nem cabeça
não tem ninguém que mereça
não tem coração que esqueça
não tem jeito mesmo
não tem dó no peito
não tem nem talvez ter feito
o que você me fez desapareça
cresça e desapareça..."