sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Retratos

Depois eles se encontraram por acaso. Ela já havia se despedido do outro e ele da outra.
Eram os dois somente. Apesar da pouca certeza, ele sabia que a encontraria ali.
Cauteloso, começou uma conversa. Despretensiosa.
Ela compartilhou.
Por vezes olhavam-se por um tempo e logo desviavam para outro canto como se tal ato substituísse a total falta discurso e a imensa vontade de agir. A vontade partia dele.
Ela guardava lá seus mistérios. Seus olhos de mistério, e aquele seu cacoete de sempre repetir duas vezes a mesma palavra para qualquer coisa que ele falasse. Isso o irritava, já que o cacoete só confirmava o quão confuso, logo entediante, seu discurso era. Mas o prendia.
Não queria parar de falar. O que aconteceria se parásse?
Assim, o tempo passava. O tempo se perdia. E ele falava e ela concordava sempre com as expressões repetidas. "Total... Total...", "Massa... Massa...", "Assim... Assim...", "Nem tanto... Nem tanto..."
No passado, lá estava ela. Sozinha... Sozinha...
Foi então no presente. Apareceram outros e outras.
E agora estavam ele, outra, ela, outro.
Assim... Assim...
Nas mãos um presente.
"O que você tem aí?" ela perguntou.
"Um disco" respondeu
Ela lê o título e completa "Muito bom! Muito bom!"
Mal sabia ela que era um presente. Daquela noite em que estavam sozinhos, ela comentou algo sobre aquele disco. Dissera que gostava muito. Naquela noite, ele ainda não sabia do outro.
Sentou-se ao lado dela, preparou-se para entregar o disco/presente.
"Tenho que ir" disse ela.
"Tudo bem! Se cuida!" disse ele sem fôlego.
"Não some! Beijo!" disse e sumiu na escuridão.
"Beijo..."
E lá ficou ele, sentado, ouvindo o disco tocar na sua cabeça.
Ficou pensando se a vida não poderia ser um filme, um livro ou um disco.
A vida talvez fôsse um conto, saído dos dedos dum simples autor de mesa de bar que, cansado das injustiças que lhe acontecem, resolve dar suas dores aos pobres personagens que no conto vivem. Que no conto sofrem, e lamentam, e sentam-se ouvindo canções saídas dum disco sem vitrola.
Quando se escreve, mesclam-se várias situações vividas. Umas reais, outras imaginárias.
Umas passadas, outras futuras. Tudo ali se condensa em algo que, mesmo transposto em palavras, não exprime tudo que se quiz dizer.
Num viés maluco que por vezes de tão confuso se torna bonito, ou mesmo horrendo.
Sentado, perdido. Ele ouvia.
Levantou-se. E com medo.
Lançou-se na escuridão sem saber que fim teria.
Ou em que ponto chegaria.
Saiu... Assim! Assim!
Por fim, enfim...


Ouvindo "Ella Fitzgerald and Joe Pass" em "Don't Be That Way":

"Don't cry,
Oh, honey, please, don't be that way
Clouds in the sky
Should never make you feel that way
The rain, will bring the violets of May
Tears are in vain
So honey, please, don't be that way"
As long as we
See it through
You'll have me
I'll have you
Sweetheart, tomorrow is another day
Don't break my heart
Oh honey, please, don't be that way..."


Ouça aqui: http://jakrapan.multiply.com/music/item/92