Já estava naquelas de se jogar do telhado quando a Morte parou ao seu lado.
"Não! Não! Não faça isso..." gritou erguendo a foice.
Inquieto e desnorteado ele parou.
"Mas só estava indo dormir" disse calmamente.
"Pensa que não vi você encarando aquele pote cheio de remédios no banheiro?" indagou apontando para a porta.
"Não... São só balas de menta sem açúcar" disse ao se sentar na cama.
"No armário do banheiro?" indagou abrindo o espelho com a ponta da foice.
"É, depois de escovar os dentes. Mantém o hálito ainda mais fresco"
Com as mãos esqueléticas, a Morte pegou o pote, abriu com certa dificuldade, cheirou e colocou pra dentro da caveira algumas balas.
"Menta, não falei?" disse ele já puxando o cobertor e acomodando a cabeça no travesseiro.
A Morte, agora desconcertada, e com o hálito um tanto mais fresco sentou-se ao pé da cama apoiando-se sobre o cabo da foice.
"Quer dizer então que você não vai se matar?"
"Deveria?" perguntou desinteressado.
"Ora, foi o que me informaram" pigarreou, estufou o peito cheio de ossos que de fato, eram só ossos e continuou "Vá até lá falar com ele! Dê um susto nele! Diz que não queremos que ele faça o que a gente pode fazer por ele..."
"Ou então?" perguntou.
"Ou então o quê?"
"O que acontece se eu quiser fazer o serviço?"
"Não! Não! Não pode... Cria todo um tumulto! Começam a falar que eu não estou com nada, que não estou dando conta do recado. E o barbudo então..."
"Deus? O que tem ele?"
"Melhor não falar sobre isso"
"Qual é?"
"Bem... Ele anda meio mal falado por aí. Ninguém mais bota fé no coitado. Nem ele mesmo! E quando um de vocês se mata, todo mundo fica comentando por alto que ele bem que podia ter feito alguma coisa pra evitar. Um milagrezinho qualquer, entende?"
"E é por isso que você veio aqui?" perguntou apoiando-se nos cotovelos.
"Exatamente, pra evitar que você suje mais ainda o nosso nome"
"Que bom que todo mundo aceita uma caveira falante empunhando uma foice como um milagrezinho"
"Não reclame! Você é um dos primeiros do Programa de Contensão de Suicidas" disse toda pomposa.
"A coisa está grave assim?" interessou-se.
"Só não está pior que aqueles românticos"
"Imagino. Bem! De qualquer maneira você pode ficar despreocupada e pode contar pros seus superiores ou sei lá que não vou me matar. Não tenho motivos"
"Mas você parecia tão convincente" disse indignada.
"É, eu sei... É que às vezes bate aquele sentimento e a gente pensa como seria o mundo sem a gente... Quem sentiria nossa falta?"
"Vocês tem umas angústias tão bobas..." disse a Morte balançando a caveira.
"Você não tem angústias?" perguntou.
"Olha pra mim! Essa roupa ultrapassada, essa cara ossuda e essa foice pesada dá uma dor nas costas. Estou aqui desde que o primeiro de vocês morreu, mas não estava lá quando o primeiro se matou"
"Você lembra?"
"Claro! Estava em serviço no Japão quando me contaram. Foi um escândalo. Houve uma reunião! Todos convocados, inclusive eu, que geralmente fico de fora" olhou pro chão e continuou "O barbudo fingia que estava tudo sob controle, que tinha sido apenas uma falha nos planos, mas todos sabiam que Ele já tinha perdido o controle fazia um tempo. E os outros me olhavam com certa dúvida, como se eu tivesse culpa de algo também. Aquele moça nem estava na minha lista, ia morrer velhinha numa cadeira de balanço cheia de netinhos"
"Era uma mulher?" perguntou já se sentando na cama.
"Sim! Bonita. Bom marido e lindos filhos" parou um instante "Mas a corda foi fatal"
"Enforcou-se?"
"Foi..." parou de novo "Foi um caos porque ninguém tinha visto aquilo antes. Depois de ordenar uma injeção de otimismo e algumas doses de auto-estima na humanidade, o barbudo me chamou na sala junto com o Destino"
"Destino é alguém?" perguntou intrigado.
"É, mas não vou muito com a cara dele. Acha-se o dono da verdade e vive querendo se meter no meu trabalho. Pois bem, estavamos eu e ele sentados. O barbudo na mesa dele com um ar pensativo.
"O que deu errado?" perguntou
O Destino olhou pra mim como se eu fosse responder e acabou dizendo "Com todo o respeito, senhor, mas a culpa é do Livre Arbítrio"
Furioso, Deus chamou o rapaz.
Entrou na sala meio sem graça ao nos encarar.
"Já sei o que vão dizer" estufando o peito "que foi minha culpa, que eu enchi a cabeça dela de besteiras, pois bem, foi quase isso, mas eu não pude controlar. Ela começou a criar uma vontade própria, algo bem parecido comigo, mas que eu não pude lutar contra"
"Você sabia bem que não deveria interferir no trabalho desses dois aqui" disse o barbudo apontando para nós. O Destino com aquele olhar orgulhoso.
"Senhor, se é para trabalhar assim, eu me demito" e saiu.
O barbudo ainda ficou olhando para a gente até dizer "Muito bem, arrumem o que tiverem de arrumar, reescrevam o que tiverem de reescrever, espero que ele não cause mais problemas" e saímos"
"Mas então? Ele causou?"
"É claro! Desde então foi uma loucura. As pessoas começaram a se matar a rodo" disse nervosa "e o que mais me irritava era ter que encontrar com o Destino toda hora, sempre querendo me dizer o que fazer."
"Por que não o pararam?"
"Ele se esconde bem" disse a Morte decepcionada.
"Talvez ele não tenha sido responsável por todos esses suicídios. Talvez as pessoas só estavam insatisfeitas mesmo, e com o passar do tempo, foram entrando cada vez mais em crise, e tudo aquilo que foi criado já não fazia mais sentido. De que importa que o Universo está se expandindo se a pessoa que você quer não te quer? Como posso me dar ao luxo de ficar feliz quando grande parte do mundo passa fome? As coisas saíram mesmo do controle"
"Mas estava tudo tão bem planejado" disse a Morte indignada.
"Pois é... E olha você aqui falando comigo" disse dando uns tapinhas na costas ossudas da Morte.
"E por que você não se matou ainda?" perguntou ela intrigada.
"Não! Não! Quero ver até onde vai dar..." parou, olhou para aqueles buracos que encarava como olhos e disse "quando você voltar a me ver eu poderei dizer que estava certo!"
"Bem... Como você não vai se matar, tenho outros para convencer" disse já se levantando.
"Deixe eles!" pediu.
"Está maluco? E a nossa imagem como fica?" e sumiu.
Ficou ainda um tempo sentado na cama. Tanto tempo havia passado desde que tinha se demitido. Quase não lembrava da cara da Morte, ela mesmo não o reconheceu. Deitou-se novamente. Sua intenção não era mesmo que a garota morresse, só havia sugerido que ela fugisse e tentasse algo novo, mas aquilo bateu de frente com tudo e na corda ela viu sua solução. Simples, mas um tanto covarde.
Corajoso ato, porém covarde.
Até cair no sono ficou pensando, divagando. Ora, por quê?
Nem ele sabia.